João L. Fante
Pequena e magra. Tão pequena que parecia um desenho animado. Uma menininha, mas com cara de mulher feita. Uma bundinha gostosa, peitinhos quase invisíveis sob a bata indiana, cabelos longos, castanhos avermelhados. Vestia roupas power’s flowers como aqueles malárias e artenóides que andam por aí vendendo brinquinhos e pulseiras feitas com arame de cobre e pedrinhas de plástico. Chegou acompanhada de um cabeludo magro, alto e bunda-mole, três filhos, dos quais dois de colo e um de aproximadamente três anos. Instalou acampamento no Psicodália e ficou por lá, tomando vinho vagabundo com coca e muita maconha.
Piscodália é uma espécie de festival independente com muito sexo, drogas e rock’n roll, que acontece paralelo ao festival de inverno. Chega a ter mil pessoas acampadas duas semanas dentro de um barracão, com quilos de maconha e muita bebida da pior qualidade.
Quando todo mundo foi embora, ela pediu ao proprietário do barracão para ficar acampada no pátio mais alguns dias. Depois, vencido o prazo que o proprietário concedeu, de quinze dias, mudou-se com as crianças e o obscuro e calado companheiro para o velho e abandonado prédio do Mercado Municipal. Passava todos os dias na rodoviária, vendendo seu pobre artesanato, e deixava as crianças no velho mercado.
O problema começou porque o prédio do Mercado era – e ainda é - usado por uma cambada de torrados conhecidos como turma do litro e os vagabundos da cidade, que fazem ali todas as suas necessidades fisiológicas: cagam, mijam, dão o cú, etc. As crianças ficavam engatinhando lá dentro, lambuzando-se e comendo merda, o dia inteiro, todos os dias, enquanto a mãe procurava bater o recorde de tempo chapada, fumando um brown, cheirando loló e tomando a pior cachaça que já vi na vida, uma tal de “zorro”, que não vale os 50 centavos, o litro, cobrados pelos comerciantes do local.
Foram os próprios comerciantes da feira-mar que deduraram a hipinha para o Conselho Tutelar. Os conselheiros mais a assistente social da prefeitura, uma deliciosa loira chamada Franceline que vivia com um advogado gago (numa cidade pequena todo mundo é transparente; você fica sabendo todos os detalhes da vida de cada um e a privacidade é quase impossível), recolheram os pirralhinhos encardidos de merda e os encaminharam para a Casa de Passagem, onde estão até hoje, limpos e bem alimentados.
Um dia, eu a vi de perto, na porta da cozinha da prefeitura. Vestia uma dessas calças de cós tão raso quanto insuficiente para esconder os pentelhos e o rego da bunda. Apesar de magra e tão pequena, a hipinha tinha enormes estrias no ventre, sinal de muitos partos, e muita cicatriz pelo corpo todo. Mas era muito bonita de rosto. Não combinava com ela, o rosto, esteticamente desproporcional ao corpo tão mirrado. No todo, parecia uma dessas sacanagens da natureza, um brinquedo de deus na boca do cachorro. Nos olhos, brilhava uma vida que conhecia absolutamente a besta-fera rugindo no seu cangote. Era disso que fugia na chapação, e estava sendo derrotada, como todos nós.
Eu a observava de longe, desde o dia em que armou acampamento no Psicodália. Mas não quis saber a sua história. Mesmo porque, ultimamente andava com baixa capacidade para admitir o verbo tolerar e atirando com pesado calibre - ela mantinha-se longe de mim como o diabo da cruz. Mas eu sabia que era uma das nossas. Já havia identificado, de longe, o sinal que nos põe diretamente na estrada.
E foi aí que eu percebi novamente: a dor não pára, nunca.
Foda-se
Vivo numa cidade do litoral em que poucas pessoas vão para o mar. Na beira de uma baía belíssima, cheia de vida, selvagem, com centenas de ilhas interessantes e sossegadas, no entanto, o povo prefere o centro histórico - e sua secular decadência - onde se reúne e onde estão os bares e as praças. Na bela orla marítima quase nunca tem gente. Um trapiche deserto, uma praia vazia, é o que se vê.
Com tudo isso, a hipinha conseguiu sair para o mar. Só que, o barqueiro era muito mais lock do que ela e tinha um grande histórico de acidentes marinhos por desconhecer totalmente os baixios, os locais onde havia pedras quase à flor d’água – não tinha noção do tempo das marés, luas, ventos, essas coisas que acho que marinheiro deve saber, e ainda por cima estava sempre embriagado, cozido, torrado, com a pior cachaça que já provei na vida, a tal de “zorro”. Aquilo é ácido sulfúrico da melhor qualidade.
Tinha que dar cagada mesmo. Acrescente-se a isso o fato de ser um dia de vento forte, frio, chuva fina e persistente.
Quando os bombeiros chegaram, o barqueiro estava boiando com o colete salva-vidas. O barqueiro contou para os bombeiros que ela estava perto de uma ilha, onde ocorreu o naufrágio. Os bombeiros socorreram o cara e nem foram procurar a menina. Mas no outro dia, ela estava novamente tomando café de graça na cozinha da prefeitura. Notei que estava diferente. Havia uma fulgência nova no olhar. Um véu de lágrima malsinando a dor cobria a sua íris. Parecia mais velha, mas mais forte. Disposta a encarar de novo o bicho nos olhos e dizer: foda-se!